Enquanto penso no que escrevo ouço sons de armamento pesado
passando por minha janela. Parece ao leitor que escrevo uma obra de ficção, mas
não, essa é a realidade dos meus dias nos últimos anos de minha vida. Não sei
se escrevo baseado no que estudei até aqui ou apenas descrevo o que observo em
meu cotidiano. Talvez faça os dois.
A História tem juntamente com a Geografia me sustentado
financeiramente nos recentes anos de minha carreira como professor. No último
voo mais alto escrevi um capítulo inteiro sobre “A escravidão moderna”, tema
que muito me chama a atenção e que venho pesquisando cotidianamente. Observo
que por ser muito incômodo para boa parcela das pessoas a provocação sobre o modelo de vida que hoje
levamos é uma interminável fonte de discussões acaloradas, mesmo entre
familiares e amigos mais próximos.
Afinal, a escravidão acabou?
Muitos autores e amigos escrevem ou falam em suas aulas
sobre o que seria a escravidão. Me dou ao direito de escolher algumas obras
para embasar essa prosa de maneira mais simples e objetiva visando o fomento e
não o engodo de uma boa conversa que possa ser proferida na mesa de um pé sujo
ou no auditório da universidade. A fala acadêmica não me seduz nessa
perspectiva, mas sim o saber expressado pelo pescador, como sugeria meu antigo
professor Jorge Luiz Barbosa, quando eu era aluno da UFF.
Lendo o professor Joel Rufino dos Santos aprendi a situar
algumas coisas básicas que não organizava em minha cabeça. Compreendi que o
Movimento negro sempre existiu desde que o sistema de Raças foi ideologicamente
instituído para que ocorresse a vantagem obviamente financeira do sistema
dominante vigente. Foram e são do movimento todos os que lutam pelo fim do
racismo, como clubes sociais, sociedades secretas, quilombos, terreiros, os que
lutaram pela abolição, os que lutaram contra senhores de escravos e feitores,
contra os pombeiros e tumbeiros, todos esses, mantém o mais longo movimento
social do país, o mais ativo, nem sempre tão organizado, mas nos últimos anos o
mais combatido ao meu ver.
Afinal, o racismo é uma problemática muito naturalizada no
Brasil. Alguns afirmam que ele não existe, outros acham que ele existe mas é um
problema menor frente a pobreza e fraqueza de infraestrutura a qual a população
mais pobre carece. Hoje no país de acordo com a Anistia internacional, 77% dos
jovens de 15 até 29 anos no território nacional são pretos, um genocídio
incessante e lucrativo aos senhores de engenho contemporâneos com sua
continuada “Guerra às drogas” iniciada na América do norte e espalhada por todo
o longínquo continente norte-sul. Quando levantado numa conversa, o racismo
logo é tido como um “Exagero” por algum participante, mesmo que de maneira
introspectiva, velada, mutilada, mas sempre constante.
Ser escravo no Brasil sempre foi ser uma mercadoria, um
animal ou objeto de uso privado. Tudo constando em lei, legitimado pelo poder
público e em épocas pretéritas pela igreja predominante. Aliás, ambas as
instituições se prevaleceram da venda desta “mercadoria” através de impostos e
ajudas em suas festas e afins. A divisão por classes sempre favoreceu aos que
são complacentes com o dominador. O termo escravo foi mais brando em todo o
mundo, exceto aqui. Aqui a relação foi mais brutal, o trabalho nas lavouras das
grandes commodities exigia um sistema de torturas mais efetivo do que onde apenas
havia a escravidão doméstica, em menor escala. Aqui o grande empreendimento
necessitou de muita mão de obra, muitos instrumentos de tortura para uma massa
gigantesca de escravizados, uma economia baseada em escravos. “Fosse comprado
aos 15, morreria, provavelmente antes dos 30” , cita o professor Joel em “Nação
Quilombo”, escrito em parceria com Nei Lopes e Haroldo Costa. O padre Antonio
Vieira no século XVII já naturalizava e regulamentava a tortura submetida ao
trabalhador escravo como sendo “uma fortuna...conformidade e imitação de
divindade e semelhança” ao que sofrera Jesus Cristo, a fim de dignificar o
trabalho. O que hoje nos parece hediondo também pareceu para alguns
progressistas de outrora, mas se manteve como muitos outros problemas
socioeconômicos de sempre.
Logo o racismo é um dos artifícios para mantermos no Brasil
o que temos de pior em termos econômicos. Ele mantém a desigualdade de classes
em níveis cada dia mais absurdos com a ajuda de um Estado que sempre prezou em
tirar dos mais pobres e dar aos mais ricos. A concentração de renda se faz
presente com a ajuda de truques como a já citada “Guerra às drogas” onde a
maior parcela de encarcerados e mortos é preto, nos “subempregos”, na educação
pública deficiente, nos serviços de saúde precários, e em outros muitos espaços
onde o preto não é convidado a entrar.
E pra você, a escravidão acabou?
Rio de Janeiro, 15 de abril de 2017.
Ainda ouço tiros aqui perto.
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