sábado, 15 de abril de 2017

Guerra às drogas

Enquanto penso no que escrevo ouço sons de armamento pesado passando por minha janela. Parece ao leitor que escrevo uma obra de ficção, mas não, essa é a realidade dos meus dias nos últimos anos de minha vida. Não sei se escrevo baseado no que estudei até aqui ou apenas descrevo o que observo em meu cotidiano. Talvez faça os dois.

A História tem juntamente com a Geografia me sustentado financeiramente nos recentes anos de minha carreira como professor. No último voo mais alto escrevi um capítulo inteiro sobre “A escravidão moderna”, tema que muito me chama a atenção e que venho pesquisando cotidianamente. Observo que por ser muito incômodo para boa parcela das pessoas  a provocação sobre o modelo de vida que hoje levamos é uma interminável fonte de discussões acaloradas, mesmo entre familiares e amigos mais próximos.
Afinal, a escravidão acabou?
Muitos autores e amigos escrevem ou falam em suas aulas sobre o que seria a escravidão. Me dou ao direito de escolher algumas obras para embasar essa prosa de maneira mais simples e objetiva visando o fomento e não o engodo de uma boa conversa que possa ser proferida na mesa de um pé sujo ou no auditório da universidade. A fala acadêmica não me seduz nessa perspectiva, mas sim o saber expressado pelo pescador, como sugeria meu antigo professor Jorge Luiz Barbosa, quando eu era aluno da UFF.
Lendo o professor Joel Rufino dos Santos aprendi a situar algumas coisas básicas que não organizava em minha cabeça. Compreendi que o Movimento negro sempre existiu desde que o sistema de Raças foi ideologicamente instituído para que ocorresse a vantagem obviamente financeira do sistema dominante vigente. Foram e são do movimento todos os que lutam pelo fim do racismo, como clubes sociais, sociedades secretas, quilombos, terreiros, os que lutaram pela abolição, os que lutaram contra senhores de escravos e feitores, contra os pombeiros e tumbeiros, todos esses, mantém o mais longo movimento social do país, o mais ativo, nem sempre tão organizado, mas nos últimos anos o mais combatido ao meu ver.
Afinal, o racismo é uma problemática muito naturalizada no Brasil. Alguns afirmam que ele não existe, outros acham que ele existe mas é um problema menor frente a pobreza e fraqueza de infraestrutura a qual a população mais pobre carece. Hoje no país de acordo com a Anistia internacional, 77% dos jovens de 15 até 29 anos no território nacional são pretos, um genocídio incessante e lucrativo aos senhores de engenho contemporâneos com sua continuada “Guerra às drogas” iniciada na América do norte e espalhada por todo o longínquo continente norte-sul. Quando levantado numa conversa, o racismo logo é tido como um “Exagero” por algum participante, mesmo que de maneira introspectiva, velada, mutilada, mas sempre constante.
Ser escravo no Brasil sempre foi ser uma mercadoria, um animal ou objeto de uso privado. Tudo constando em lei, legitimado pelo poder público e em épocas pretéritas pela igreja predominante. Aliás, ambas as instituições se prevaleceram da venda desta “mercadoria” através de impostos e ajudas em suas festas e afins. A divisão por classes sempre favoreceu aos que são complacentes com o dominador. O termo escravo foi mais brando em todo o mundo, exceto aqui. Aqui a relação foi mais brutal, o trabalho nas lavouras das grandes commodities exigia um sistema de torturas mais efetivo do que onde apenas havia a escravidão doméstica, em menor escala. Aqui o grande empreendimento necessitou de muita mão de obra, muitos instrumentos de tortura para uma massa gigantesca de escravizados, uma economia baseada em escravos. “Fosse comprado aos 15, morreria, provavelmente antes dos 30” , cita o professor Joel em “Nação Quilombo”, escrito em parceria com Nei Lopes e Haroldo Costa. O padre Antonio Vieira no século XVII já naturalizava e regulamentava a tortura submetida ao trabalhador escravo como sendo “uma fortuna...conformidade e imitação de divindade e semelhança” ao que sofrera Jesus Cristo, a fim de dignificar o trabalho. O que hoje nos parece hediondo também pareceu para alguns progressistas de outrora, mas se manteve como muitos outros problemas socioeconômicos de sempre.
Logo o racismo é um dos artifícios para mantermos no Brasil o que temos de pior em termos econômicos. Ele mantém a desigualdade de classes em níveis cada dia mais absurdos com a ajuda de um Estado que sempre prezou em tirar dos mais pobres e dar aos mais ricos. A concentração de renda se faz presente com a ajuda de truques como a já citada “Guerra às drogas” onde a maior parcela de encarcerados e mortos é preto, nos “subempregos”, na educação pública deficiente, nos serviços de saúde precários, e em outros muitos espaços onde o preto não é convidado a entrar.
E pra você, a escravidão acabou?
Rio de Janeiro, 15 de abril de 2017.
Ainda ouço tiros aqui perto.