quarta-feira, 18 de junho de 2008

Energia esgotável.



O esgotamento das reservas é muito mais rápido que se supunha. Mas o consumo não para de crescer e podem surgir, entre os grandes importadores, disputas pelas fontes que restam

Nicolas Sarkis

Durante os três últimos anos, aumentaram consideravelmente as preocupações com o esgotamento das reservas petrolíferas. Agora, elas não se restringem às importações do Oriente Médio, região de turbulências crônicas. Abrangem o conjunto mundial de produção, refino e transporte de petróleo e gás natural. O sinal de alarme é acionado cada vez mais freqüentemente, tanto pelos dirigentes políticos quanto por especialistas independentes. Em seu último relatório bienal “Perspectivas Energéticas Mundiais”, publicado em 7 de setembro de 2005 e relativo ao período de 2004 a 2030, a Agência Internacional de Energia (AIE) expressa um sentimento quase generalizado, ao afirmar que “ os riscos para a segurança energética aumentarão muito, em curto espaço de tempo”, e que “a vulnerabilidade a perturbações no nível de reservas se acentuará com o aumento do comércio global [1]”. Durante seu discurso de ano novo, no dia 5 de abril de 2006, o presidente francês Jacques Chirac, por sua vez, expressou a “necessidade de preparar-se para a era pós-petróleo” como a grande questão do século.

Considerado o principal substituto para o petróleo, o gás natural ainda suscita preocupações, sobretudo depois de o maior exportador mundial, a Rússia, suspender as entregas para a Ucrânia e a Geórgia e as reduzir para a Hungria, Áustria e Itália, por insuficiência de estoque. Essas perturbações foram consideradas sérias o bastante para que o problema da segurança energética dominasse a pauta do encontro do G-8 em fevereiro de 2006, em San Petersburgo.

No discurso sobre o estado da União de 31 de janeiro, o presidente norte-americano George W. Bush preconizou, baseado no habitual apelo à segurança, a necessidade de os Estados Unidos reduzirem sua dependência face às importações de hidrocarbonetos e de “ir além do petróleo”. A mesma opinião pode ser ouvida na Europa, onde uma reunião de especialistas em energia, realizada no dia 15 de fevereiro, em Berlim, destacou “o interesse estratégico” na diminuição da dependência européia de importações do Oriente Médio e da Rússia, e no reforço das medidas de segurança que se tornaram “cruciais”, segundo Luc Werring, alto funcionário da União Européia.

Mais guerreiros e mais dependentes

Por que todo esse desconforto, quando a águia estadunidense estende suas asas de um extremo ao outro do Oriente Médio, da Ásia Central e da África, e os países exportadores não hesitam em abrir as comportas para enfrentar a rápida aceleração da demanda e evitar uma escassez de oferta?

Esse sentimento súbito e generalizado de insegurança é o oposto do que muitos previam ou esperavam, antes da guerra contra o Iraque e da tomada, por Washington, do país que possui as maiores reservas mundiais de petróleo, depois da Arábia Saudita, Ele também contraria as certezas que prevaleciam logo após a guerra do golfo (1990-1991) e da libertação do Kwait pelos Estados Unidos e seus aliados.

Nessa época, ficou famosa uma frase James Schlesinger, ex-secretário da Defesa e diretor da CIA (governo Nixon) e ex-secretário de Energia (governo Carter). Ele afirmou, diante do 15º congresso do Conselho Mundial de Energia, (setembro de 1992, Madrid), que, na opinião de altos funcionários do governo de Bush pai, “o povo americano aprendeu com a guerra do golfo que é muito mais fácil e divertido dar um pé na bunda do pessoal do Oriente Médio que fazer sacrifícios para limitar a dependência em relação ao petróleo importado”.

Schlesinger explicitou seu raciocínio destacando que, depois da queda da União Soviética e da ameaça soviética às reservas do Oriente Médio, os temores em relação à segurança das reservas de petróleo enfraqueceram consideravelmente nos Estados Unidos. Acotação relativamente baixa do preço do produto, que contribui para um aumento do nível de importações e para a queda da produção nacional, não era mais razão de inquietações.

A última constatação é que o cenário mudou profundamente ao longo dos três últimos anos. Ao invés de viabilizar um forte aumento da produção iraquiana e uma conseqüente baixa nos preços, a invasão do Iraque, em março de 2003, foi seguida por uma série de sabotagens, tomou a dimensão de uma guerra civil e acabou provocando uma baixa na produção de petróleo — de 2,5 milhões para 1,5 milhões de barris [2] por dia, em um dos principais países exportadores.

Aliados a outros fatores, esse fenômeno levou a uma explosão das cotações. Na média calculuada pela Organização dos Países Produtores de Petróleo (OPEP), elas passaram de 24,36 dólares o barril, em 2002, US$ 50,58, em 2005.

Um mundo viciado em óleo

Ao contrário das crises de petróleo de 1973-1974 e de 1979-1980, esta alta completamente inesperada e o desconforto com relação à segurança de suprimento não são conseqüências de um embargo, de uma baixa nas exportações ou da utilização do “ouro negro” como arma por determinado país produtor. Ela encontra suas origens numa série de fatores – especialmente nos atentados e na instabilidade política no Oriente Médio, nas tensões em torno do programa nuclear iraniano, nos conflitos étnicos na Nigéria [3]], etc. Há razões ainda mais preocupantes e duradouras, já que envolvem o equilíbrio entre oferta e procura.

Vivemos uma aceleração inesperada do ritmo de aumento das demandas de consumo. Após um crescimento médio de 1,54% ao ano, durante o período 1992-2002, a demanda mundial aumentou 1,93% em 2003 e 3,7% em 2004. Atingiu um recorde de 82,1 milhões de barris por dia em 2005. Em apenas três anos, a demanda por petróleo aumentou em 5,5 milhões de barris por dia. O crescimento foi assombroso especialmente na China, com um salto de 7,6% em 2003 e 15,8% em 2004.

Este aumento da demanda levou os países produtores a extrair até o limite de sua capacidade. Eles não têm como obter mais petróleo. A esse fator adiciona-se a saturação da capacidade de transporte e refino, sobretudo nos Estados Unidos, que aumentou naturalmente a espiral ascendente dos preços.

As estimativas disponíveis, sobretudo as da Agência Internacional de Energia (AIE) e do Departamento norte-americano de Energia (DoE) prevêem um aumento de cerca de 50% no nível mundial de consumo, durante os próximos 25 anos. Isso provocaria um salto de 83,2 milhões de barris/dia, em 2005, para 115,4 milhões, em 2030, segundo a AIE (ou 131 milhões, de acordo com o DoE). Como bem diz um anuncio publicitário recente do grupo norte-americano Chevron Texaco: foram necessários 125 anos para que o mundo consumisse o primeiro trilhão de barris de petróleo, mas serão necessários apenas 30 anos para que se consuma o segundo — o que corresponde ao total das reservas comprovadas.

Como e a que custo poderíamos responder a essa rápida escalada da demanda? A resposta a essa questão depende de duas variáveis: de um lado, a confiabilidade dos números existentes sobre a estimativa das reservas; de outro, o possível aumento da capacidade de produção.

E se as reservas forem ainda menores?

Apesar de não serem novas, as suspeitas a respeito do real volume de reservas foram recentemente reforçadas por revisões para baixo anunciadas por algumas empresas petroleiras, e por novas estimativas feitas por geólogos independentes. No que se refere aos membros da OPEP, as dúvidas a respeito das estimativas oficiais remontam aos anos 80, quando os países do Golfo Pérsico realizaram, um após outro, reavaliações espetaculares de suas reservas, sem que isso jamais fosse respaldado por novas descobertas, altas de preço ou novos estudos.

Entre 1985 e 1986, os Emirados Árabes Unidos aumentaram a estimativa oficial de suas reservas de 33,9 para 97,2 bilhões de barris. A Arábia Saudita aumentou a sua estimativa de reservas em 50%, levando-a de 169,6 bilhões (1987) para 254,9 bilhões de barris (1988). O Iraque dobrou seus cálcuos, que passaram de 32 bilhões de barris (1981) para 65 bilhões (a partir de 1983), chegando depois a 115 bilhões (2001). Esse inchamento das estimativas ocorreu em uma época em que os países-membros da OPEP fixavam suas quotas nacionais de produção essencialmente em função das reservas comprovadas de cada país. Entre 1983 e 1988, o total das reservas estimadas pela OPEP aumentou em 62%, saltando de 470 para 764,4 bilhões de barris. Novas reavaliações, nos mesmos países, elevaram em seguida estas reservas para 896,6 bilhões de barris em primeiro de janeiro de 2005.

Algumas dessas revisões certamente foram conseqüência de novas descobertas, ou de progressos tecnológicos que influenciaram a capacidade de extração. Outras são objeto de desconfiança, mesmo porque a quase totalidade dessas reservas é controlada por empresas estatais, que recusam qualquer controle ou análise externa. As estimativas oficiais das reservas da OPEP ditas “comprovadas” são superiores em cerca de 400 bilhões de barris às feitas por entidades independentes, entre elas a Association for the Study of Peak Oil (ASPO). Os volumes chamados por alguns especialistas de “barris fictícios”, correspondem a 44% do total das estimativas oficiais da OPEP. Isso evidentemente não significa que os números apresentados pelos orgãos independentes sejam mais próximos da realidade que os anunciados pelos países em questão. De todo modo, a enorme diferença entre os estimativas permite ter idéia da complexidade dos critérios técnicos e econômicos utilizados, e das dúvidas que cercam os dados disponíveis.

As transnacionais também superestimam

Tais dúvidas são reforçadas pelo fato de os números publicados por certos membros da OPEP permanecerem inalterados durante períodos muito longos, como se cada barril extraído fosse miraculosamente substituído naquele instante por uma nova descoberta ou reavaliação. O Iraque, por exemplo manteve sua estimativa em 100 bilhões de barris ao longo de todo o período de 1987 a 1995, quando a elevou para 115 bilhões. Não menos surpreendente é o exemplo do Kwait, que manteve intacta, entre 1991 e 2002, a estimativa de 96,5 bilhões de barris em suas reservas comprovadas — apesar de uma extração acumulada de 8,4 bilhões de barris, no período. Baseando-se em dados que teriam sido fornecidos por altos funcionários do governo do Kwait, o semanário americano Petroleum Intelligence Weekly sustenta que as estimativas oficiais são uma mescla de reservas comprovadas, prováveis e possíveis. As reservas realmente comprovadas não passariam de 48 bilhões de barris...

O volume das reservas comprovadas da Federação Russa permanece incerto, devido tanto à falta de transparência das estatísticas do país quanto ao método de avaliação utilizado. De acordo com fontes ocidentais, o volume real das reservas seria de 30 a 40% inferior às estimativas oficiais, de 72,3 bilhões de barris.

Mesmo no que diz respeito às empresas multinacionais, com ações negociadas na bolsa e submetidas a controles contábeis e empresas de auditoria, há fortes dúvidas – sobretudo depois do caso Shell. Depois de uma forte queda na produção de suas jazidas de Yebal, em Omã, e outras perdas em todo o mundo, a companhia teve que reconhecer, em janeiro de 2004, que suas reservas haviam sido superestimadas em algo próximo de um terço. Poucos meses mais tarde, a empresa americana El Paso anunciou também uma reavaliação para baixo em cerca de 11%. Mais recentemente (janeiro de 2006) o grupo espanhol Repsol-YPF teve também que diminuir em 1,25 bilhões de barris suas supostas reservas — isto é, 25% do total do que fora estimado antes. Assim como ocorrera com a Shell, o grupo foi alvo de uma avalanche de ações judiciais por parte de seus acionistas.

Extração supera as novas descobertas

Uma outra causa de preocupação é o fato de que o volume de petróleo extraído do subsolo é, há 20 anos, superior ao volume descoberto. Algumas multinacionais, com dificuldades em manter o nível de produção, compram, quando podem, ativos de outras empresas. O episódio mais recente foi o da ChevronTexaco, que pagou alto preço para adquirir, em 2005, a empresa norte-americana Unocal, cobiçada pela estatal chinesa CNOOC. Sem esta aquisição, a taxa de renovação de reservas da ChevronTexaco não ultrapassaria os 40-45% em 2005.

Junto com a desaceleração das descobertas e com a baixa, lenta mais inexorável, da proporção reservas/extração, um outro risco pesa sobre o mercado do petróleo. Trata-se do declínio na produção, num bom número de países, e da insuficiência de investimentos voltados para desenvolver as novas tecnologias necessárias para o suprimento da demanda.

Por causa da baixa na produção e do aumento de suas necessidades nacionais, certos países, antes grandes exportadores de petróleo, tornaram-se importadores (Indonésia, Egito e Tunísia; sem esquecer, é claro, os Estados Unidos), ou estão em vias de se tornar (Gabão, Omã e Síria). No México, um estudo realizado em 2005 pela companhia nacional Pemex, alerta para o risco de um declínio na extração muito mais rápido que o previsto – principalmente no campo de Cantarell, que, com 2 bilhões de barris, representa cerca de 60% do total da produção no país. No Mar do Norte, a AIE prevê o declínio das reservas, de 6,6 bilhões de barris (2002) para 4,8 bilhões (2010) e apenas 2,2 bilhões (2030).

Este declínio poderia ser compensado a tempo por países exportadores? Não há nada mais incerto. No que diz respeito ao Oriente Médio, cuja produção deveria supostamente dobrar até 2025, para saciar a crescente demanda global, as projeções da AIE e do departamento americano de Energia parecem ser totalmente irrealistas. Somente a Arábia Saudita pôs em marcha um programa que visa o aumento de sua capacidade — dos atuais 10,8 bilhões de barris dia para 12,5 bilhões de barris dia em 2009. Nos demais países, a situação é bem menos promissora, sobretudo no Irã, Iraque e Kwait. A situação política no Iraque e as tensões envolvendo o programa nuclear iraniano comprometem a capacidade produtiva desses países. O famoso “projeto Kuwait”, que deveria dobrar a produção do país, avança lentamente há dez anos, enquanto as antigas jazidas de Burgan e de Raudhatain, que totalizam 67% da produção do país, começam a dar sinais de esgotamento.

Nesse contexto, marcado por uma demanda cada vez maior e recursos cada vez mais raros, os principais perigos que rondam a segurança do abastecimento são o desequilíbrio entre a oferta e a procura e a concorrência e risco de conflitos, entre os principais países consumidores. Essa rivalidade explica a corrida em que se lançaram os Estados Unidos, os países europeus, a China, o Japão e a Índia, para pôr os pés nos países detentores de reservas e controlar as rotas marítimas e terrestres entre os centros de produção e as grandes zonas de consumo. A guerra do Iraque, que permitiu a Washington livrar-se da presença francesa, russa e italiana naquele país; o novo oleoduto Bakou-Tbilissi-Ceyhan (BTC); e o recente acordo entre Alemanha e Rússia sobre o gasoduto norte-europeu (GNE), que será construído sob o Báltico, são exemplos de grandes manobras tendo em vista a segurança de abastecimento energético dos países envolvidos.

Depois da crise de 1973/1974, os perigos mudaram de natureza. A palavra embargo foi banida do vocabulário dos países exportadores. Por maior que seja a ironia, são os países industrializados que utilizam o petróleo como arma, contra os países exportadores. Isso se deu, por exemplo, por meio das sanções da ONU contra o Iraque (no período 1990-2003) ou de sanções norte-americanas contra Irá, Líbia — por meio do ato de sanção contra a Líbia e o Irã (ILSA) [4] — e Sudão. Ao contrário do que supõe um preconceito tão absurdo quanto perigoso, há uma verdadeira complementaridade entre os países importadores e exportadores. À legitima preocupação dos primeiros, para garantir suas importações de petróleo e gás, corresponde a não menos legítima e não menos vital preocupação dos segundos, interessados em garantir seus mercados e receitas de exportação, indispensáveis para o desenvolvimento de suas economias. Quanto às divergências sobre os preços, elas mesmas têm se atenuado. A nova tendência de alta favorece uma necessidade imperativa. Ela permite conseguir aprovação para investimentos colossais no desenvolvimento da capacidade de produção e de outras fontes de energia mais caras.

Com o petróleo destinado a se tornar cada dia mais caro e mais raro, o problema da segurança de abastecimento requer um comportamento político bem diferente daquele de trinta anos atrás. Os antagonismos e os riscos de conflitos situam-se hoje bem menos entre os países produtores e os importadores. Concentram-se entre os próprios países importadores, cujo aumento de demanda e o declínio na produção doméstica levam inevitavelmente a depender ainda mais de importações, sobretudo provenientes de países do Oriente Médio. Algumas velhas receitas para a manutenção da segurança, entre elas a diversificação das fontes de abastecimento ou o exercício da pressão sobre os países produtores a fim de se beneficiar de petróleo abundante e barato, tornaram-se ineficazes. Os novos desafios somente podem ser enfrentados mediante relações baseadas no equilíbrio de interesses entre os países soberanos.

(Tradução: Leonardo Abreu) leonardoaabreu@yahoo.com.br

Retirado de http://diplo.uol.com.br/2006-05,a1307

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