domingo, 1 de junho de 2008

Savanização.

BRASIL: CARRASCO E VÍTIMA

"Carrasco e vítima" talvez seja a melhor definição para o papel do Brasil no xadrez climático global. Apesar de subdesenvolvido, o país é o quinto maior emissor de gases-estufa do planeta. E, como todo país subdesenvolvido, sentirá de forma desproporcionalmente alta os impactos da mudança climática ao longo do século 21 e além.

Cerca de 75% do um bilhão de toneladas de gás carbônico emitidas pelo Brasil todos os anos vêm de mudanças no uso da terra. Em português mais claro: desmatamento. E quase todo o desmatamento se concentra na Amazônia. A maior floresta tropical do planeta já perdeu 600 mil quilômetros quadrados (15% de sua área) para lavouras, pastos e cidades. Até o ano 2100, poderá perder aproximadamente 20% para o aquecimento global, num fenômeno conhecido como savanização.

A hipótese de savanização foi desenvolvida em 2003, pelos pesquisadores Marcos Oyama e Carlos Nobre, do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe). Eles criaram um modelo de vegetação potencial que, inserido no modelo climático do Inpe, estimava o efeito do aumento da temperatura sobre o tipo de vegetação nos vários biomas brasileiros (Amazônia, cerrado, mata atlântica, Pantanal, pampas e caatinga). O modelo prevê que, com 3ºC de aquecimento, uma porção da floresta amazônica fica seca demais para poder sustentar o tipo de vegetação que comporta hoje, com grandes árvores de folhas largas.

Onde há uma exuberante mata pluvial passará a crescer uma espécie de savana (cerrado) empobrecida. Uma vez que o efeito se instala, ele pode virar um dominó, arrastando boa parte da Amazônia. Isso porque uma parte significativa das chuvas na região Norte do
país é gerada na própria floresta, pela evaporação da água no solo e, sobretudo, pela transpiração das árvores, propagando-se no sentido nordeste-sudeste como num jogo infantil de passa-anel. Uma vez que a parte central-leste da floresta (que já é naturalmente mais seca) se savaniza, a cadeia de reciclagem de chuvas se interrompe, savanizando uma área ainda maior.

Nas palavras de Nobre, cria-se um "novo estado de equilíbrio" entre clima e vegetação, no qual é impossível voltar ao estado anterior. Ou seja, uma vez transformada em savana, a floresta nunca mais voltará a ser floresta.

Isso já seria uma catástrofe para a biodiversidade e motivo mais do que suficiente para tentar evitar que o aquecimento de 3ºC aconteça. Mas há mais detalhes nesta história: o ciclo de chuvas na Amazônia determina também o transporte de umidade para as regiões Sul, Sudeste e Centro-Oeste. Com a floresta modificada, o restante do Brasil ficaria automaticamente mais seco, e os rios que fornecem água e geram energia para a maior parte da população nacional teriam seu fluxo comprometido, especialmente na região Sul e na bacia do rio da Prata. Savanização, portanto, rima com apagão. Um bom motivo para qualquer empresário paulista se preocupar com a floresta, muito além de plantinhas e bichinhos.

As contas originais de Oyama e Nobre identificaram a temperatura mínima para disparar o fenômeno, mas não estimaram qual seria a probabilidade de isso acontecer de fato - o objetivo não era fazer uma previsão do clima e sim detectar mudanças nos biomas. Um grande estudo liderado por José Marengo, também do Inpe, cuidou da projeção. 21 Marengo cruzou dados de vários modelos climáticos usados pelo IPCC com modelos regionais de alta resolução desenvolvidos pelo próprio Inpe e pela USP para projetar mudanças do clima na América do Sul até o fim do século 21. Ele chegou a conclusões assustadoras: a temperatura na Amazônia poderá crescer de
3ºC a 5,3ºC (bem mais que a média nacional) até o fim do século, com uma elevação de inacreditáveis 8ºC no pior cenário. Isso sem contar o desmatamento, que em si mesmo também tem o poder de causar savanização, aquecendo o leste amazônico em até 4ºC.

O mesmo estudo estimou ainda temperaturas para o Nordeste, o Pantanal e a bacia do rio da Prata. Dentre todas essas regiões, a elevação mínima de temperatura dada pelos modelos em 2100 é de 2,2ºC. Nesse cenário, além de a Amazônia virar cerrado, a caatinga desapareceria, transformando o semi-árido nordestino em um deserto.

SÃO PAULO DA BORRACHA

Ao longo dos últimos cinqüenta anos, o Inpe já verificou que o Brasil esquentou mais do que a média mundial no século 20. As temperaturas máximas anuais no país subiram 0,7ºC somente nesse último meio século, enquanto o aquecimento durante o inverno chegou até 1ºC. O número de noites quentes no ano subiu de 5% no começo do século 20 para 35% no começo do 21. O de dias frios caiu de 25% a 30% na década de 1970 para 5% a 10% entre 2001 e 2002. "É comum ouvir das pessoas com mais de cinqüenta anos, especialmente no Sul e no Sudeste, a observação de que não faz mais frio como antigamente. Essa percepção é correta", escreveram Nobre e Marengo.

Tudo isso já tem impacto sobre um dos carros chefes da economia nacional, a agricultura no Estado de São Paulo. Um estudo desenvolvido em conjunto por Eduardo Assad, da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa) e Hilton Pinto, da Universidade Estadual de Campinas, mostrou que o café, que fez de São Paulo o estado mais rico do país no século passado, está sumindo aos poucos, cedendo lugar para uma forasteira insuspeita: a seringueira, nativa da quente Amazônia.

Para florescer, o café precisa de um clima quente, mas não muito: não pode haver mais do que cinco dias com temperaturas superiores a 34ºC durante a época da floração, no outono. Sem esses pudores climáticos, a seringueira tende a prosperar. Em 1990, a região de São José do Rio Preto, fronteira da cafeicultura paulista, tinha 2,3 mil hectares cultivados com borracha.

Em 2005, essa área havia crescido dez vezes. Dos computadores de Pinto e Assad brotam os novos mapas da agricultura brasileira. Para o café, um aumento de 5,8ºC na temperatura (o cenário pessimista das previsões do Inpe) significa uma redução de 92% da área apta para o plantio em São Paulo, Minas Gerais e Paraná - praticamente os únicos Estados que cultivam o grão. A cafeicultura migraria para o Rio Grande do Sul, o Uruguai e a Argentina. Uma elevação de meros 3ºC já significaria, para essa cultura, um prejuízo de R$ 2 bilhões.

Ainda mais emblemático - e problemático - é o caso da soja, menina dos olhos da agricultura nacional, que só em 2005 contribuiu com US$ 8,7 bilhões para a balança comercial brasileira. 25 A planta se dá bem em uma faixa extensa de terras no Brasil, que vai do Rio Grande do Sul ao Amapá, passando por Goiás, parte de Minas, Mato Grosso do Sul, Mato Grosso, Rondônia e Pará. No pior cenário de elevação de temperatura, com a redução das chuvas das quais o grão tanto necessita, ela se torna viável apenas em um pedaço da Amazônia e do Paraná. No Rio Grande do Sul, onde seu cultivo começou, ela desaparece por completo.

Texto de Cláudio Angelo , autor do livro "O aquecimento global" extraído de: http://www1.folha.uol.com.br/folha/publifolha/ult10037u367502.shtml

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